Reconhecimento de filiação socioafetiva pós-morte. O novo precedente que pode mudar disputas de herança

Afeto tem valor legal. STJ admite filiação socioafetiva mesmo sem adoção formal

Uma decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reacendeu o debate sobre até onde vai o reconhecimento jurídico do afeto.

Ao admitir que uma mulher fosse declarada filha socioafetiva de um casal já falecido, sem manifestação expressa dos dois em vida, o tribunal estabeleceu um precedente que pode afetar famílias em todo o país, especialmente aquelas formadas por vínculos informais, como as relações entre padrastos, madrastas e enteados.

O caso, julgado pela Terceira Turma e relatado pela ministra Nancy Andrighi, envolvia uma mulher criada desde a infância por um casal que a tratava como filha, mas que nunca formalizou a adoção. Após a morte deles, ela buscou o reconhecimento judicial do víncul.

Para o STJ, a convivência e o afeto, quando públicos e duradouros, podem bastar para gerar efeitos jurídicos, inclusive patrimoniais e sucessórios.

A decisão não apenas reconhece o valor jurídico do afeto, mas também levanta dúvidas delicadas: até onde esse entendimento pode ir? Padrastos e madrastas, por exemplo, poderiam ter sua relação com enteados transformada em um vínculo de filiação reconhecido pela Justiça, mesmo sem um pedido formal? E quais seriam as consequências patrimoniais disso, especialmente em disputas de herança?

Para esclarecer o alcance e os limites dessa decisão e o que famílias precisam compreender antes de tirar conclusões precipitadas, o advogado Dr. André Andrade, Professor e Mestre em Família, explica os principais pontos do caso e suas possíveis repercussões.

🔹 O que decidiu o STJ

“O que o STJ decidiu é juridicamente relevante, mas também sensível”, explica o Dr. André Andrade. “O tribunal reconheceu que o vínculo de paternidade socioafetiva pode ser declarado mesmo após a morte, desde que existam provas consistentes de convivência e afeto. Porém, esse reconhecimento tem consequências reais, inclusive patrimoniais e deve ser analisado com cautela.”

🔹 A diferença entre o afeto e a adoção

O caso analisado pela ministra Nancy Andrighi não tratava de adoção, que exige consentimento formal dos pais e segue um procedimento legal rigoroso.

“O que o STJ destacou é que a socioafetividade nasce da vida vivida, do cuidado, da presença, da relação pública de afeto e não de um documento. Mas isso não significa que qualquer relação afetiva possa se transformar em filiação”, ressalta o Dr. André.

A distinção é fundamental: enquanto a adoção cria o vínculo jurídico de forma formal e definitiva, a filiação socioafetiva reconhece algo que já existia na prática, mas só pode ser declarada se houver provas claras dessa realidade.

🔹 O ponto sensível: efeitos patrimoniais

O aspecto mais discutido da decisão é justamente o efeito patrimonial.

“Ao reconhecer uma filiação socioafetiva post mortem, o Judiciário também abre a possibilidade de que essa pessoa seja incluída em partilhas e heranças. Isso pode alterar completamente o cenário sucessório de uma família”, explica o advogado.

Na prática, o reconhecimento pode fazer surgir novos herdeiros, o que preocupa muitas famílias que têm vínculos afetivos não formalizados, como padrastos, madrastas e enteados.

“Imagine um padrasto que criou o enteado com afeto, mas sem nunca formalizar a adoção. Se esse enteado entrar com uma ação após a morte dele, e comprovar essa convivência, há chance de o vínculo ser reconhecido judicialmente. Isso teria efeitos diretos na divisão da herança”, comenta o Dr. André.

🔹 Critérios e limites do reconhecimento

Apesar do impacto, o especialista reforça que o STJ não abriu uma brecha irrestrita.

“A decisão não cria uma regra automática. O reconhecimento depende de provas robustas, da demonstração pública e contínua da relação, e da intenção clara de exercer a função parental. Não basta ter afeto, é preciso que a sociedade reconheça aquele vínculo como relação de pai e filho.”

Entre as provas mais aceitas, estão testemunhos, fotografias, mensagens, registros de dependência, correspondências e até postagens públicas que evidenciem a convivência.

🔹 Risco de distorções e o papel do Judiciário

O avanço da socioafetividade é positivo, mas também impõe desafios.

“O grande risco é a banalização do instituto. O reconhecimento da filiação não pode se transformar em instrumento de disputa patrimonial. O Judiciário precisa continuar exigindo provas sólidas e uma análise ética de cada caso”, alerta o Dr. André Andrade.

Ele reforça que, embora a decisão traga justiça para situações reais de afeto, ela exige responsabilidade, tanto das partes quanto dos operadores do Direito. Um novo equilíbrio no Direito de Família

“A mensagem do STJ é clara: o afeto importa, mas o Direito precisa equilibrar esse valor com a segurança jurídica das famílias”, conclui o especialista.
“Para quem tem vínculos familiares não formalizados, como padrastos e enteados, é essencial compreender que essas relações podem gerar consequências jurídicas no futuro. Por isso, buscar orientação preventiva é sempre o caminho mais seguro.”

Mais do que uma mudança na forma de reconhecer famílias, a decisão do STJ abre espaço para um debate sobre responsabilidade, planejamento e segurança jurídica.

Reconhecer o afeto é importante, mas compreender seus efeitos é fundamental.

Em tempos em que as relações familiares se tornam cada vez mais diversas, entender o que a Justiça pode (ou não) transformar em vínculo jurídico é o primeiro passo para evitar surpresas no futuro.

 

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